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A intolerância religiosa - Simpatia de amor

intolerancia religiosa - simpatia de amor

As reflexões aqui apresentadas focam no dado histórico e antropológico da intolerância e buscam seus antídotos religiosos. Apresentam intolerante, particularmente aquelas de natureza religiosa. As religiões constituem fontes de intolerância e, por esta razão, poderão oferecer os antídotos para es reflexão é concluída com a apresentação de parâmetros teológicos atuais que permitem superar a postura intolerante e a própria tolerância com as posturas de acolhida e valorização das alteridades.


A intolerância religiosa é uma postura que integra uma cosmovisão mais ampla, ainda que, muitas vezes, sociedade atual, edificada sobre os princípios da diversidade e da igualdade. A intolerância nega a alteridade como realidade ontológica, política e ética a partir da qual a sociedade moderna constrói seus parâmetros de convivência nos mais diversos aspectos. Não se encontra com muita frequência a intolerância em estado politicamente puro, mas como atitude que se assenta, em última instância, sobre um sistema mais amplo e profundo que l justifica a convicção de quem a pratica de modo consciente ou não. A intolerância pode manifestar-se: como uma atitude reproduzida na forma de preconceito mais ou menos diluído na sociedade atual, como um “valor” inconsciente de indivíduos e grupos; como ideologia arraigada em discursos que são igualmente reproduzidos, muitas vezes em nome da ciência e da lei; e como militância política, presente em grupos organizados de cunho religioso, partidário e propriamente político. As reflexões que se seguem são de cunho conceitual, não focalizam nenhuma dessas expressões praticadas concretamente, mas na postura intolerante que não precisa ser demonstrada empiricamente; atitude que pode, de fato, ser observada a olho nu nos comportamentos e nos discursos. Isso quer dizer que o racismo existe, mesmo que o seu reprodutor não milite em um grupo racista, que o sectarismo religioso existe, mesmo que o indivíduo religioso intolerante não pertença propriamente a uma seita. A sociedade moderna de direitos possui mecanismos que controlam ou eliminam essas formas organizadas de intolerância, embora não consiga reformar as convicções morais arraigadas nas tradições, em indivíduos e grupos. O preconceito se mostra como a sobrevivência mais resistente dessa atitude, uma vez que, no âmbito da própria modernidade, reproduz-se com grande frequência, senão na maioria das vezes, como atitude individualizada, ou seja, como sentimento, convicção e postura que escapam dos mecanismos instituídos de controle social. A intolerância é uma doença social – política e religiosa – persistente que se encontra alojada em indivíduos e grupos suspeitos e insuspeitos, em discursos ideológicos previsíveis e em discursos esteticamente corretos, em discursos espontâneos e até mesmo em discursos científicos. É verdade que se trata de uma doença social e política diagnosticada definitivamente pelas sociedades modernas, embora as religiões mundiais já tivessem lançado os pressupostos mais antigos desse diagnóstico e apresentado o remédio para o mesmo. A presente reflexão será desenvolvida em quatro tópicos. O primeiro faz uma aproximação da intolerância como postura presente nos processos de constituição das sociedades humanas. O segundo assume as religiões como solos privilegiados de produção de intolerâncias no passado e também no presente. O terceiro constrói um rápido quadro tipológico das intolerâncias que sobrevivem em nosso contexto. O quarto pergunta pelos antídotos para a intolerância religiosa. Sem negar os antídotos institucionais modernos, afirma que o antídoto mais adequado é o religioso. Como qualquer outro, a antídoto religioso se constrói como discurso normativo, no caso, a partir de referências teológicas. A conclusão afirma que o Cristianismo se constitui como ética que supera na raiz o ciclo da intolerância com o amor universal. 


O solo e o subsolo da intolerância

A palavra intolerância vem do verbo latino tolerare (suportar, aceitar). O prefixo in- indica a negatividade, portanto, “intolerar” significa não aceitar alguém ou alguma coisa em nome de uma verdade absoluta. “E a certeza de estar de posse de uma verdade absoluta, que se procura impor por anuência ou repressão” (Abbagnano, Verb. Intolerância) A maioria das línguas ocidentais preservou essa raiz latina comum em seu vocabulário, certamente como sinal de uma postura politica fundamental que constituiu as nações modernas. Na mitologia grega, Procusto encena de modo emblemático a intolerância humana, quando todos os visitantes tinham que se moldar ao tamanho exato de sua cama. Na posição contrária, situa-se a cena da cruz, que inclui o inimigo que mata no perdão do intolerado-crucificado. Da violência extrema emerge o seu antídoto: o amor ao inimigo. O Cristianismo foi, então, construído a partir da regra do perdão e do amor ao próximo e ao inimigo. A virtude da tolerância e da paciência (anoxé) é, então, parte dessa lei maior, embora não seja uma virtude menor. O Novo Testamento insiste que os cristãos devam “suportar uns aos outros” (cf. Ef 4,2; Col 3,13). Na medida em que o Cristianismo se institucionalizou, incorporou a lógica do poder com todas as suas estratégias. A Igreja fez guerras e alimentou a intolerância para com tudo o que colocava em risco sua unidade e autonomia. A história posterior a Constantino é uma historia de intolerância que adquire as mediações mais sofisticadas e cruéis na medida em que a cristandade via em risco sua hegemonia. Pode-se dizer que na longa Idade Média a intolerância esteve institucionalizada como estratégia de poder e como valor religioso de defesa da pureza e da unidade da fé. A intolerância adquiriu seus contornos como vício político no contexto do pensamento e da práxis política modernos, tendo em vista a constituição do Estado laico que deve garantir a convivência das diferenças religiosas em seu interior, superando as intolerâncias do antigo regime. O contexto de conflito entre as igrejas cristãs exige do Estado a postura de proteção à diversidade religiosa e de garantia da tolerância entre as mesmas. A conhecida Carta sobre a tolerância, de John Locke (1689), apresenta os fundamentos teológicos e políticos dessa exigência moderna. A tolerância é, segundo o filósofo, uma virtude inerente ao Evangelho, e a intolerância um vício que trai a lei fundamental do amor. Os governos devem promover a tolerância como um valor universal da convivência civil. Essa pauta pioneira de Locke torna-se regra das democracias modernas, ainda que se possa afirmar sua redução ao formal, na medida em que a expansão europeia ocorreu sob a regra explícita da negação do outro. A postura intolerante não nasce por geração espontânea e nem subsiste como uma convicção isolada, ainda que possa ser uma opção ou atitude individual. Mesmo que assim subsista, como no caso de certos preconceitos, não constitui igualmente uma atitude politicamente neutra e sem consequências éticas. Pelo contrário: trata-se de uma atitude socialmente reprovada como negadora de uma ética fundamental da convivência humana. A ligação indissociável entre indivíduo e coletividade exige pensar a intolerância como postura que tem sua existência nos processos de objetivação e interiorização que constitui a dinâmica da vida social (cf. Berger, 2003, p. 15-41). A intolerância como ideia interiorizada e exteriorizada pelos indivíduos é socialmente construída no tempo e no espaço e no jogo concreto das relações sociais que afirmam identidades distintas e, ao mesmo tempo, divergentes, quando o mesmo e o diferente confrontam-se como territórios antagônicos, quando a diferença se torna consciência no espelho do outro e assim se define e quando o outro se torna ameaça ao mesmo e passa, então, a ser rejeitado. A intolerância é implícita na constituição das identidades fechadas em seus territórios; conatural das sociedades arcaicas, em que um grupo identitário nega o outro, não somente como rival a ser eliminado por alguma razão material, mas como não humano e não mundo, uma vez que o grupo se considera sinônimo de mundo e de humano. Os etnocentrismos atuais são sobrevivências anacrônicas dessa postura superada no processo de formação das civilizações que trouxeram à luz a consciência da condição de humanidade, seja pelo viés religioso (todos os filhos do mesmo Deus), seja pelo viés filosófico (a noção de natureza humana). A intolerância é um resíduo resistente dessa postura pré e antimoderna, mas, antes ainda, resquício moral de pré-civilização sucedida já há vários milênios por uma ética da casa comum, ética que forjou as leis de ouro como principio básico da convivência. Na contramão de tudo isso, se mostra como o eu sem o outro, como identidade que nega alteridade e como desejo de aniquilação do outro. A postura intolerante manifesta-se na maioria das vezes como atitude individual dentro das sociedades de direito nas quais a tolerância é garantida por lei e afirmada como virtude ética. Os grupos intolerantes organizados ainda persistem e, em outros grupos mais amplos e modernos, a atitude é decorrência de um sistema de crenças mais amplo que a reproduz como base legitimadora primeira, como “manutenção do mundo” (cf. Berger, p. 42-64). Com efeito, em todos os casos é expressão de um conjunto maior de “verdades” que analiticamente pode ser decodificado como um sistema que possui um fundamento, um modo de estruturar-se e orienta-se para certos objetivos. Portanto, ainda que existam indivíduos intolerantes politicamente isolados, eles reproduzem uma atitude que integra um regime de verdade mais amplo que a ampara e a uma postura prática que situa a ação em uma determinada direção. Esse regime pode ser uma tradição que reproduz hoje fragmentos de um sistema completo do passado - intolerâncias raciais como perpetuação do regime escravocrata, por exemplo -, pode ser a expressão pública de um grupo político ou religioso nem sempre visível, mas ao qual o intolerante pertence efetivamente, ou, ainda, a manifestação explícita e assumida de uma ideologia, como no caso de grupos neonazistas ou de setores integristas católicos. Nesse caso, o intolerante assume sua identidade no mesmo ato de sua postura intolerante. De qualquer modo, a intolerância é sempre uma atitude manifesta que se vincula direta ou indiretamente a um sistema mais amplo, ainda que o indivíduo tenha conhecimento desse vínculo. 


A intolerância e seu fundamento

A intolerância possui um fundamento, ou seja, o de uma verdade sobre a qual se assenta a doutrina, o preconceito ou a ideologia que rejeita o valor do outro ou o próprio outro. Esse fundamento é entendido como verdade absolta (que não admite discussão e se impõe como norma inquestionável), como unidade (que rejeita as diversidades e não aceita ser interpretada de maneiras distintas), como imutabilidade (que nega as mudanças e se apresenta como verdade eterna que “sempre foi assim”) e como ordem (que condena a desobediência e opera como regra única e segura). A intolerância descansa sobre esse fundamento e fornece a convicção a seus defensores; não tolerar significa, portanto, afirmar positivamente uma verdade segura que defende a si mesma, negando tudo o que dela difere ou que venha ameaçar a sua vigência hegemônica. O fundamento fornece a justificativa inquestionável, em nome de uma lei natural, de uma revelação divina, de uma ordem superior na forma de lei ou, ainda, de uma tradição interiorizada como regra identitária rígida e imutável. A intolerância é, nesse sentido, a defesa consciente ou não de uma verdade primeira “mistificadamente” assumida como eterna que dispensa a verificação de seu conteúdo e a crítica de suas origens. É a ideia verdadeira assumida como valor que antecede as pessoas concretas, doutrina e lei que goza de supremacia sobre vida e as relações reais entre as diversidades e as mutações que caracterizam a vida biológica e social.


A intolerância como autorreferência

A postura intolerante se estrutura de maneira autorreferenciada, como uma identidade autocentrada que se define em oposição aos demais, totalidade que nega toda exterioridade como falsa e menos perfeita. Do ponto de vista social, pode apresentar-se como supremacia de uma determinada classe sobre outra, quando se afirma direitos exclusivos e distintos para uma classe e se recusa como ilegítimas qualquer mobilidade vertical e como perigosas as relações entre as mesmas. As velhas afirmações de naturalização das classes sociais estão fora de moda e formalmente resolvidas pelas leis. No entanto, as afirmações valorativas de cunho social expressam essa intolerância: “pobre é preguiçoso”, “as políticas de reparos e inclusão social contribuem com o comodismo”, “os pobres são violentos” etc. Do ponto de vista étnico-racial, a intolerância se apresenta como superioridade de uma etnia ou raça sobre as demais. Os etnocentrismos vigem com grande força, ainda que se fale em pós-colonialismo. O racismo é reproduzido em nosso contexto como tempero perverso dos discursos e como preconceito velado dos processos sociais e políticos. Do ponto de vista religioso, a superioridade de uma crença em relação às demais talvez seja a intolerância mais explícita, por ser a mais bem justificada. Em nome de uma revelação ou de uma “interpretação correta” da mesma, os grupos religiosos reproduzem uma oposição que desqualifica o outro como equivocado em seu fundamento. Do ponto de vista de gênero, a intolerância opera como centralidade natural de um gênero em detrimento do outro e como negação de orientações que fujam do padrão natural ou instituído como normal.


Os objetivos

A afirmação de uma identidade autocentrada tem seus objetivos a serem alcançados. A intolerância é implicitamente militante, na medida em que afirma a sua verdade e a pronuncia como regra de vida. Ela não somente nega as alteridades como ilegítimas e perigosas, mas também milita contra as mesmas, expondo suas ilegitimidades, ilegalidades, sob alegações de cunho natural ou teológico. Como fim último, trata-se de afirmar a construção de um modo de vida unificado e homogê- neo que, para tanto, precisa eliminar as diferenças. Ainda que não se verifique essa pretensão como um projeto político concreto, seus sinais se fazem presentes nas posturas como desejo e como vontade. São os grupos que afirmam a saudade do passado unificado como melhor, que fazem proselitismo para agregar em seu grupo o maior número possível de adeptos. Em suma, a intolerância se encaixa em um sistema de manutenção legitimador que se articula como razão (fundamentalismo), como organização (sectarismo), como postura (fanatismo) e como finalidade (exclusivismo).


A intolerância religiosa

As religiões são canteiros privilegiados de germinação e perpetuação das intolerâncias por se tratar de tradições que se definem a partir de fundamentos, organização grupal, normas e objetivos explícitos. Nas religiões, via de regra, a intolerância é visível e virtuosa. É uma atitude conatural que define a pertença, expressa a crença e baliza os comportamentos. Não são necessárias ferramentas metodológicas ou analíticas sofisticadas para encontrar essa atitude mais ou menos disseminada nos comportamentos religiosos e reproduzida nas visões e nas práticas dos fieis. Qual será a razão dessa conaturalidade? Isso significa afirmar que todas as religiões são intolerantes?


O fundamento verdadeiro

Seja qual for a religião, elas sempre se apresentam como transmissoras de um fundamento verdadeiro por meio de uma tradição repetida no tempo presente; do contrário, elas sequer existiriam. Não há religião sem um fundamento primeiro que é oferecido como dom atual e como regime de vida. Elas são sempre portadoras de um carisma – um dom original benéfico e salvífico – por meio de formulações doutrinais e normativas fiéis e coerentes – que reproduzem o carisma original – organizadas de modo hierárquico por especialistas – que interpretam as origens e explicam a doutrina com autoridade sagrada – e reguladas por normas que permitem controlar os comportamentos individuais. Evidentemente, as religiões não são iguais no modo de operação desse sistema. Pode se observar tradições e práticas mais ou menos fundamentalistas, ou seja, as que afirmam um fundamento fixo, inalterado e eterno para além de todas as mudanças históricas, e aquelas que confrontam o fundamento com a história e busca formas de atualização consciente de sua oferta religiosa. O modo de entender e explicar o fundamento por parte das tradições religiosas é, portanto, importante no discernimento ético das mesmas. A articulação do sobrenatural com o natural, ou, do transcendente com o histórico, constitui um dado importante nesse trabalho. Há compreensões que operam como “sistema fechado”: o fundamento sobrenatural e revelado constitui um dado a ser transmitido positivamente como verdade inalterada sem qualquer exame racional. Outras compreensões operam como “sistema aberto”: o fundamento sobrenatural é uma revelação histórica vivenciada por um grupo e transmitida a cada geração de modo sempre renovado e, portanto, interpretado em cada tempo e lugar. E não se trata unicamente de uma maior ou menor racionalização do fundamento religioso, mas de uma compreensão diferenciada do próprio fundamento: 1ª) - que pode ser entendido como uma espécie de revelação destilada e pura do divino no tempo e no espaço, revelação que se identifica com a própria formulação que vai sendo transmitida no decorrer do tempo pela tradição e interpretada de uma única maneira pelos especialistas autorizados; 2ª) - que pode ser entendido como uma experiência histórica vivenciada no passado, formulada em seguida pelo grupo imbuído da missão de transmiti-la às gerações seguintes com a finalidade de conduzir sempre de novo à experiência original e reformulada sempre em cada contexto na medida em que as condições históricas se modificam. No “sistema fechado” a verdade é intocável, fixa e segura. Não deixa lugar para as dúvidas e para as intepretações. Quem não adere e interioriza a verdade univocamente formulada não é considerado fiel, e o que professa outra verdade é considerado errado. Esse deve ser convertido ou rejeitado.


A comunidade de salvação

A comunidade que se define em oposição ao outros como identidade autorreferencial compõe um pequeno cosmos cujo funcionamento é assegurado pelas normas. Em muitos casos, as pessoas constroem comunidades locais, comunas religiosas. De qualquer modo são construídos “paraísos comunais” ideologicamente dentro da sociedade global, como explica Castells (cf. 2001). Nela, há lugar unicamente para a interiorização passiva da norma em sua formulação exata a ser reproduzida fielmente por cada membro. A intolerância constitui o sentimento e a reação em relação ao diferente; rejeitá-lo é o caminho de preservação da pureza do grupo e das ideias que o sustentam e a estratégia que reafirma a identidade dos salvos. Do outro, o perigo da perversão e a insegurança que pode abalar a unidade e a estabilidade do grupo. A comunidade salva somente aceita os iguais, só valoriza o que reflete como espelho a coletividade que tudo integra em sua unanimidade e unidade em permanente autoafirmação. A comunidade que se abre para o contato perde a segurança da salvação garantida e exige correr o risco do erro e da transgressão que expulsa do paraíso. Nesse sentido, a intolerância mantém a infantilidade de cada membro assimilado por completo pela objetividade rígida do grupo que o define e o impede de ser sujeito autônomo. É a tirania da heteronomia que se impõe a todos e dispensa o discernimento e a decisão de cada um. A religião diferente constitui ameaça porque questiona o mesmo e revela a outra verdade como existente e como possibilidade. Resta desqualificá-la como falsa, como menos verdadeira ou como representante do próprio mal. Na lógica arcaica do axis mundi, a comunidade de salvação se afirma como a presença real e autêntica de Deus no tempo e no espaço, desde onde todas as demais verdades devem ocupar um lugar secundário ou ser rejeitada como fora da graça, fora do mundo da fé.


A salvação final

A intolerância religiosa tem um significado escatológico ou um finalismo extramundano que lhe atrai utopicamente como justificação definitiva. É a última palavra de verdade que separa os bons e os maus e determina os meios para se chegar à realização final. Os milenarismos são a concretização mais perfeita dessa convicção. O destino final é a razão última e a motivação primeira da fidelidade a uma verdade que não vacila e garante a salvação definitiva. Portanto, ser intolerante torna-se uma questão de bem ou de mal, de salvação ou de perdição definitivas. A escatologia assim imaginada dispensa a esperança em nome da certeza e oferece a tranquilidade da exclusividade da salvação para os eleitos para além de todos os vínculos. Afirma, desse modo, que o caminho certo e conhecido do bem se opõe ao caminho de mal com todos os seus caminhantes.


Expressões da intolerância religiosa

As sociedades ocidentais costumam localizar a intolerância fora de si mesmas e, sobretudo, nos grupos islâmicos. Não sem razão, muitos desses grupos tornam-se, de fato, modelos emblemáticos de intolerância pelo grau de extremismo da violência praticada. Trata-se de intolerância explícita que, embora não dispense verificação de causas, está presente nas mídias e exposta ao julgamento público. Mas, é preciso verificar as formas de sobrevivência das posturas intolerantes nos nossos dias em nosso contexto social. A intolerância explícita e politicamente assumida constitui casos de resistência e de desvios sociais por si mesmos e, por essa razão, criminalizados pelo público e pelos tribunais. No entanto, há outras formas de construção e preservação da intolerância; formas de sobrevivência sobre certos controles, assim como a intolerância implícita que sobrevive e opera por meio de mecanismos culturais e institucionais que as toleram pela via da indiferença, da rotina que as normalizam ou, ainda, pela via de paliativos legais. Este item pretende se aproximar desse fato. A intolerância religiosa opera e manifesta em níveis ou esferas distintas, uma vez que a comunidade religiosa goza de autonomia relativa no conjunto da sociedade envolvente e dentro da própria comunidade é possível observar, igualmente, grupos ou tendências distintas. Em cada uma dessas esferas o papel social do sujeito religioso adquire contornos próprios, e opera legitimamente de modo diferenciado. E, evidentemente, os mecanismos de controle social se diferenciam em cada um dos espaços de convivência social. Numa imagem de círculos concêntricos, é possível tipificar a intolerância religiosa de fora para dentro do grupo de pertença. É possível encontrar intolerâncias controladas, embora existam e se perpetuem nas intimidades religiosas e, por conseguinte, intolerâncias preservadas como valor religioso. – A intolerância socialmente controlada. Os sujeitos religiosos intolerantes são socialmente controlados pelos mecanismos legais e éticos, e se apresentam politicamente corretos, embora preservem as posturas intolerantes como coisa de foro íntimo ou de consciência religiosa. Nesse caso, grupos de identidades intolerantes podem também privar-se de manifestá-las publicamente, em nome de sua própria sobrevivência social e política, como moralmente corretas e politicamente legítimas. – A intolerância religiosamente controlada. O mesmo mecanismo de controle acontece na comunidade religiosa, via de regra nas igrejas, em nome de fundamentos religiosos e da convivência pacífica, ainda que segmentos e sujeitos se definam como intolerantes por razões de fé. Nesse caso, o controle pode ser mais fraco, de forma que as posturas intolerantes são assimiladas pela instituição com relativa naturalidade, em nome da unidade interna a ser preservada ou, ainda, de uma imagem politicamente correta a ser exibida para a sociedade. – A intolerância verbalmente controlada. Essa subsistência é mais sutil e, por certo, a mais perversa, por compor discursos bem elaborados que escondem em suas premissas posturas intolerantes, ainda que assumam discursos de paz e de amor como virtudes importantes. É o caso de teologias que afirmam as tradições e as identidades como verdadeiras em oposição a outras menos verdadeiras. Esses discursos preservam germes teologicamente legítimos de intolerância que sobrevivem sob uma aparência de tolerância social, mas, no entanto, travam as possibilidades de diálogo e constroem grupos religiosos fechados. – A intolerância preservada em grupos sectários. Em grupos religiosos que assumem uma identidade que se define pela oposição ao outro e praticam a intolerância por mediações simbólicas (discursos religiosos, práticas proselitistas, rituais agressivos etc.), por mediações políticas (caso típico das bancadas parlamentares) e, até mesmo, por mediações físicas (com as práticas de violência física). Essa intolerância condensada, visível e institucionalizada encontra, no caso das sociedades ocidentais, mecanismos de adaptação dentro da sociedade. Criam uma espécie de rotinização da intolerância que já não atrai sanções públicas. – A intolerância preservada por segmentos religiosos. Esses grupos, amparados por uma instituição religiosa politicamente correta, assumem e alimentam posturas intolerantes como traço constitutivo de suas identidades. No caso, a instituição sequer possui mecanismos de controle; preferindo manter uma relação pacífica com seu subgrupo, toleram a intolerância. – A intolerância preservada socialmente. A sociedade possui mecanismos que incorporam seus “corpos estranhos” na medida em que esses se tornam rotina ou ocupam posições sociais, culturais, religiosas e políticas de destaque. É a intolerância operada como discurso ideológico: que esconde, sob a aparência de teologia, de filosofia ou de ciência, posturas francamente intolerantes em relação à classe, gênero, raça etc. Com efeito, esses tipos de intolerância, ainda que subsistentes nas formas mais destiladas e até institucionalizadas, operam sempre em campos de tensão, na medida em que sobrevivem em sociedades edificadas sobre os direitos iguais e sobre as liberdades religiosas, mas também relativas às interpretações divergentes que podem ocorrer dentro de suas próprias identidades religiosas.


Os antídotos religiosos da intolerância religiosa

A intolerância religiosa tem antídotos instituídos, sobretudo nos tempos modernos. O direito, como já foi exposto nos demais ensaios desse livro, é, por certo, o mais utilizado pelas nações e pelos seguimentos e sujeitos intolerados. As sociedades modernas criaram mecanismos que superaram a luta das intolerâncias, quando uma intolerância era enfrentada com outra intolerância por meio da guerra. Essa estratégia ainda sobrevive de modo literal ou metafórico. As guerras imagéticas e verbais das mídias ainda confrontam intolerâncias sem qualquer pudor político ou religioso. O antídoto ético-político fundamental da intolerância no mundo moderno foi a tolerância. Nesse regime, somente a intolerância devia, de fato, ser intolerada. Mas, a intolerância religiosa não parece ter soluções jurídicas, uma vez que pode perpetuar, em nome do próprio fundamento, os seus comportamentos. A lei não muda necessariamente a convicção, embora possa, em longo prazo, modificá-la como força externa que cria novos hábitos. A solução mais adequada e, por certo, mais eficiente da intolerância religiosa, deverá vir da própria religião, como cura pela raiz. John Locke já teceu essa argumentação em sua famosa Carta. A intolerância é considerada um desvio dos princípios e das morais religiosas, cristalizações de comportamentos que expressam uma postura estranha aos carismas originais das tradições religiosas. A esse respeito, a resposta de Jesus aos legalistas intolerantes de seu tempo é emblemática: “foi por causa da dureza de vossos corações... no princípio, não era assim” (cf. Mt 19,8). 


A revisão dos fundamentos

No princípio, não era assim! Voltar às origens é um ato de fé e de razão para que o religioso saudável possa curar o religioso doente. É das próprias origens que as religiões retiram os elementos revigorantes das práticas presentes. Os textos canônicos e as tradições não são nada mais que formas de preservar as origens para a posteridade, de transmiti-las no presente. Mas é, também, um ato de discernimento permanente das fontes transmitidas na tradição e nos textos codificados, ambos formulados em linguagens antigas que expressam contextos e costumes que deve ser examinados para serem compreendidos. O estudo permanente das fontes constitui um caminho necessário da própria fidelidade a elas por parte dos sujeitos religiosos. Esse ato de discernimento permanente faz parte da própria lógica da tradição, entendida como transmissão do passado no presente (traditio), o que significa sempre construção presente do passado (cf. Hobsbawm, p. 9-23). Esse é o campo ex officio da Teologia que se dedica, em nome da fé, a examinar as fontes a partir das condições culturais e teóricas do presente e, ao mesmo tempo, as condições presentes a partir das referências normativas do passado. O exame das fontes da fé religiosa já constitui, por si mesmo, uma postura que nega o fundamentalismo ou qualquer sacralização que impeça falar de novo sobre os significados dos fundamentos; significa hermeneuticamente afirmar que as fontes não possuem um sentido fechado e permanente, mas, ao contrário, um sentido aberto que solicita e exige o estudo permanente. Alguns princípios são básicos para essa operação: – A distinção entre experiência religiosa pura (teofanias) das experiências historicamente mediadas (revelação); – A distinção da experiência carismática original da tradição construída como meio de transmiti-la a cada geração, incluindo nessa tradição todas as codificações textuais ou orais; – A distinção de uma substância da fé que jorra da experiência original de suas formulações posteriores, sempre situadas historicamente; – A distinção de elementos centrais da tradição de elementos periféricos, como conteúdos normativamente diferenciados em grau. Assim balizada, a fé constitui uma experiência que nega toda forma de absolutização de práticas e de discursos. O Cristianismo carrega uma dimensão pneumatológica que permite atenuar todas as formas de absolutização de formulações e de práticas historicamente construídas. O Espirito do Ressuscitado que sopra onde quer rompe as barreiras culturais, as cristalizações institucionais, as fixações legais, enfim dissolve toda postura fundamentalista e intolerante. A comunidade dos seguidores de Jesus Cristo é seu corpo vivo na história, seja no sentido de um corpo feito de unidade-diversidade, ou de um corpo que se encarna nas diversas realidades e aí se refaz permanentemente em suas codificações. Em termos weberianos, pode-se pensar no carisma in statu nascendi que refaz, com sua força original, as institucionalizações históricas (cf. Weber, 1997, p. 197-198). A volta permanente ao carisma abre a possibilidade não somente de discernir a partir dele todas as falsas cristalizações, mas também resgatar de sua substância os elementos básicos e comuns com outras configurações religiosas. Alguns caminhos foram construídos por especialistas: – A revelação afirmada como uma experiência histórica não exclusiva de um povo eleito e nem como o ponto máximo de um processo realizado por Deus (Queiruga); – A experiência comum das religiões que possui um conteúdo convergente que visa preservar a vida humana em suas relações éticas fundamentais e que se encontra formulado nas denominadas “leis de ouro” (Hans Küng);– A Cristologia situada em um dado fundamental da humanização de Deus que relativiza todos os absolutos e inclui nessa fé fundamental todas as “carnes” historicamente situadas (Castillo).


A revisão eclesiológica A comunidade dos intolerantes é, sempre, uma agremiação de salvos assegurados por um fundamento revelado fixo, administrada por autoridades infalíveis e assegurada por normas inquestionáveis a serem interiorizadas passivamente pelos fiéis. O que foge dessa normalidade e dessa segurança constitui heresia, heterodoxia e perigo para o grupo. Essa eclesiologia reproduzida por séculos na Igreja Católica acaba por identificar o carisma com a instituição e, por conseguinte, sacralizar a instituição e colocá-la em oposição a tudo que está fora. No entanto, o Vaticano II se encarregou de oficializar teologicamente uma nova visão eclesiológica que relativiza a Igreja em relação a seu fundamento primeiro (O Reino de Deus) e em relação a sua missão (a humanidade). Operou, assim, uma dessectarização da Igreja, colocando-a em transitividade para além de si mesma no diálogo com as alteridades sociais, culturais e religiosas. – A Igreja é, então, sinal do Reino, da salvação, na história (Lumen gentium, 5,9 E 48) e tem como missão a salvação da humanidade (Gaudium et spes, 3). Não se define por si mesma (autorreferenciada) e nem vive para si mesma (ela vive para o serviço); – Assim definida e posicionada, a Igreja está em permanente discernimento dos sinais dos tempos (Gaudium et spes, 4, 11) e em permanente diálogo com as conquistas humanas no âmbito da política, da filosofia, das ciências (Gaudium et spes, 44); – Por conseguinte, a Igreja vive em estado de reforma, a partir de suas referências fundamentais (Unitatis Redintegratio, 6); – E caminha como peregrina na história na busca do Reino definitivo (Lumen gentium, 9 e Gaudium et spes, 39). Nesses termos, a Igreja é a negação de todas as formas de associatividade autorreferenciada que se define em oposição às outras instituições e às outras formas de pensar presentes na cultura moderna. A intolerância não tem sustentação eclesiológica, ao contrário, nega a própria natureza e missão da comunidade eclesial.


O diálogo permanente

O grupo religioso que supera o autocentramento adota o diálogo como método e como mística que move suas ações e constrói suas reflexões. O diálogo incorpora a diferença como valor, na medida em que entende o outro como fonte de verdade e, portanto, como parceiro na busca permanente da verdade mais plena. O Cristianismo é, originalmente, caminho de identificação com o Mestre na força do Espírito que conduz à verdade; é um processo permanente de crescimento que inclui o outro como presença de Deus, particularmente os pobres e os sofredores, e entende o conhecimento de Deus como amor. Só quem ama conhece a Deus (cf. 1 Jo 4,8). A prática do amor é inseparável do conhecimento e sem ele não há conhecimento da verdade. O Vaticano II adotou o diálogo como método de vida eclesial, caminho de discernimento da realidade, das ciências, da cultura e das tecnologias. Adota também o diálogo como caminho de relacionamento com as demais religiões. A intolerância religiosa não tem lugar nessa Igreja vivenciada permanentemente em transitividade, em saída, diria hoje o Papa Francisco. O Concílio entende como primeiro passo da ação ecumênica e eliminação das palavras, os juízos e as posturas que rejeitam os irmãos cristãos não católicos (Unitatis Redintegratio, 4). Afirma também que, em nome do amor, “deve ser reprovada toda e qualquer discriminação ou vexame contra homens por causa de raça ou cor, classe ou religião” (Nosta Aetate, 5). E, nesse esforço de incorporar as diferenças, os padres conciliares não hesitaram em afirmar algo inédito para o magistério católico: O desejo de tal diálogo, que é guiado somente pelo amor à verdade, observada a devida prudência, de nossa parte não exclui ninguém, nem os que, honrando os bens admiráveis do engenho humano, contudo não admitem ainda seu Autor, nem aqueles que se opõem à Igreja e a perseguem de várias maneiras (Gaudium et spes, 92).


A radicalidade cristã

O Cristianismo assenta-se sobre um carisma fundante que supera positiva e radicalmente a intolerância. Afirma-se como sistema de identidade carismática: como carisma vivo e operante no tempo presente que gera a comunidade permanentemente a partir do mistério do crucificado-ressuscitado e de seu Espírito. A superação da morte pela vida oferece o fundamento atual da superação de exclusões e de violências. No princípio a paz e o perdão como mistério fundante e, por conseguinte, como norma de vida para todos os seguidores do Mestre. O logos do amor universal gera o ethos do amor universal. A partir dessa fé, a comunidade cristã se constituiu como igualdade radical. Todas as diversidades são unificadas no mesmo corpo e, por isso, já não há judeu ou grego, homem ou mulher, escravo ou livre, exorta Paulo (cf. Gl 3,28; Rm 10, 12). Com efeito, o Cristianismo não admite como postura de convivência dos seguidores de Jesus Cristo nem a intolerância e nem a tolerância. É preciso superar a primeira postura, superando a segunda. O seu ethos transcende a intolerância e a tolerância desde seu ato fundante (morte-ressurreição), em seu querígma (primeiro anúncio) e por meio de sua lei fundamental (amor a próximo e ao inimigo). A teologia da cruz encena de modo contundente o amor superando a violência extrema que mata o outro por constituir ameaça à ordem politica e religiosa. O perdão do condenado e ultrajado aos seus algozes (cf. Lc 23,34) não constitui simplesmente a descrição de um fato, mas o emblema máximo do perdão como postura que deve superar o ódio e a vingança e do amor ao inimigo como postura que antecede todas as regras de convivência com as diferenças. A postura cristã supera a posição passiva do tolerar com o posicionamento ativo do amar o inimigo. Não basta amar os amigos, ou seja, os iguais; é preciso ir além, chegando ao extremo e amar o intolerante e, por conseguinte, rejeitar toda intolerância como prática moral (cf. Mt 5,43-44). Desloca-se o valor em toda a sua abrangência da ideia para a pessoa, da lei objetiva para vida com suas relações concretas (cf. Mt 5,1-12). A intolerância é superada em sua raiz, na medida em que se instaura o ciclo virtuoso da inclusão irrestrita de todos na convivência amorosa. Nessa ética radical não significa, portanto, intolerar a intolerância por meio de ações restritivas como forma de garantir a convivência das diferenças, atribuição do Estado moderno, mas vencê-la com a postura do perdão e do amor irrestrito que inclui a todos. Em termos paulinos: vencer o mal com o bem (cf. Rm 12,21). Na raiz da ética cristã, não se prescreve, portanto, intolerar apenas a intolerância, mas, antes de tudo, intolerar a própria tolerância com o amor irrestrito e universal.


Bibliografia ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BERGER, Peter. O dossel sagrado; elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 2003.